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domingo, 15 de fevereiro de 2015

O “bancário” ciclista.

Jorge Nunes2
Presidiu a um banco, mas recusa assumir-se como banqueiro. Já a condição de ciclista é abraçada por inteiro e com orgulho revelado, apesar de curta, embora intensa. Jorge Nunes, 77 anos, recorda o seu passado no mundo das bicicletas como se o tivesse vivido na semana passada e não na década de 1950, quando chegou a correr na equipa do Benfica. Treinava nas idas a casa, quando estava na tropa.
Avaliando o currículo, aquele homem baixo e seco nasceu para vencer. E sorrir. Fala da vida, da sua, sempre com uma mistura de alegria e emoção. Provavelmente, poderia ter sido um campeão, mas na altura as bicicletas não davam de comer a ninguém, pelo que teve que trabalhar para viver e a bicicleta ficou encostada depois de ter saído da tropa.
Ironicamente, foi nos 32 meses de tropa que conseguiu os maiores feitos enquanto atleta. “Foi o tempo em que fui ciclista”, contou Jorge Nunes, numa entrevista ao Pedais.pt no seu gabinete na União das Misericórdias Portuguesas, onde é o atual tesoureiro da instituição.
Na vida deste alentejano do litoral, nascido em 1937 na freguesia de Melides, concelho de Grândola, tudo começou cedo. Aos 12 anos, depois de terminada a instrução primária, começou a trabalhar, provavelmente na atividade mais dura das muitas que desenvolveu ao longo da vida: arrancar mato, com uma enxada ou um alferce. Mais tarde alcatroou estradas e, logo que reuniu dinheiro suficiente, comprou a primeira bicicleta: custou-lhe 500 escudos 2,5 euros (em câmbio direto), mesmo em segunda mão,  e era uma pasteleira com travões de cabo, uma máquina para se deslocar, nada virada para corridas.
Mesmo assim, por achar que tinha um andamento acima da média, um dia (de um ano que admite ter sido em 1956, quando tinha 19 anos), decidiu participar numa competição, uma espécie de circuito em volta de uma campo de futebol, em Santiago do Cacém, para onde entretanto fora viver. Ficou em 2.º e recorda-se que o vencedor foi um ciclista de Santa Margarida da Serra, outra freguesia do conselho de Grândola, conhecido pelo “Tomba”.
Tomou-lhe o gosto e algum tempo depois ei-lo entre os participantes de outra corrida do género realizada em Pinheiro da Cruz, onde ainda existe o estabelecimento prisional. Emprestaram-lhe uma bicicleta de corrida e dessa vez não deu hipótese à concorrência: segunda prova, primeira vitória. Entusiasmou-se.
Na altura trabalhava a troco de cama e mesa num ferro-velho de Santiago. Uma casa que vendia bicicletas chamada “Túlio Torres”, vizinha do seu emprego, decidiu rifar uma máquina de corrida e Jorge Nunes comprou um número. Quis o destino, ou algo mais do que isso, que o sorteio lhe entregasse a bicicleta. Conta que nunca comentou com o proprietário da loja, mas tamanha coincidência deixou-lhe a desconfiança que teria havido marosca para lhe entregarem a bicicleta, atendendo ao talento que começava a revelar em cima das duas rodas.
De ciclista a patrocinador. Com o vencedor da Volta ao Alentejo 2013, o belga Jasper Stuyven (Bontrager)
De ciclista a patrocinador. Com o vencedor da Volta ao Alentejo 2013, o belga Jasper Stuyven (Bontrager)
Com uma bicicleta de competição, outro galo cantaria. Na altura, a então Federação de ciclismo organizava uma espécie de campeonato nacional, que começava a nível concelhio. Quem ganhasse essa primeira prova, ia a nível distrital, e daí sairiam os melhores para disputar a final nacional. Jorge Nunes ganhou em Santiago do Cacém, ficou em 3.º na corrida realizada em Setúbal e, curiosamente, não se lembra do desfecho, apenas que terá ficado entre os dez primeiros a nível nacional. Começava a dar nas vistas.
A 13 de abril de 1958 apresenta-se com a nova máquina pronto para disputar outra corrida, desta vez em Grândola. Um circuito na avenida batizada, curiosamente, com o seu nome, em homenagem a um homónimo. Vinte e cinco voltas com um pouco mais de três quilómetros cada uma, com sprints de cada vez que cruzavam a meta.
Jorge Nunes ganhou destacado, ao triunfar em 22 das 25 voltas. Antes da prova, uma besta cavalar decidiria aliviar-se em pleno asfalto e fê-lo a uma distância da meta que era a ideal para o ciclista que vinha de Santiago se levantar do selim. “Cada vez que passava naquela marca já sabia que era o momento de iniciar o sprint”, conta.
Este troféu arrecadou-o precisamente na véspera de ir assentar praça no quartel do Exército de Beja, para onde foi de…bicicleta, chamado pelo serviço militar obrigatório. Cumpriu os quatro meses da recruta na cidade alentejana e, aos fins-de-semana, quando tinha autorização para deixar o quartel, ia casa, em Santiago de Cacém. “Fazia 160 quilómetros”, ida e volta, mas era um privilegiado, em relação aos camaradas de armas, porque naquela altura não havia transportes públicos. Boleias também eram difícieis, dado que os carros eram igualmente raros. Restava a bicicleta, que muito poucos militares tinham.
No quartel havia um soldado da Abela, outra freguesia do concelho de Santiago do Cacém, que também tinha um velocípede e faziam a viagem os dois, fardados e com as botas da tropa calçadas. À sexta à tarde para casa e no domingo à tarde regressavam ao quartel. Numa dessa etapas, recorda-se Jorge Nunes, furou os dois pneus da suia bicicleta. A solução que encontraram foi seguirem os dois na mesma bicicleta, sendo que um deles tinha que levar a máquina furada às costas. Confrontados com tamanha dificuldade, valeu-lhes um ourives, que seguia também de bicicleta, com a mala do ouro.
Acedeu trocar de veículos por a sua bicicleta ser mais robusta e suportar melhor o peso dos dois magalas, enquanto ele seguiria na que lhes restava. Mas tanto peso em duas rodas originou uma saída de estrada e a queda por uma barreira. “Ainda me lembro do ourives a gritar lá de cima: Vocês desgraçam-me, vocês desgraçam-me! Isso [a sua bicicleta] é o meu ganha-pão!”.
Finda a recruta, Jorge Nunes foi transferido para a Força Aérea e assentou praça na Base do Montijo. A bicicleta continuou a ser o veículo que lhe permitia ir a casa aos fins-semana, juntando o últil ao agradável: treinar e estar com a família. A viagem tornou-se mais longa: uma etapa de 130 quilómetros apara cada lado, que cumpria em quatro horas.
“Tive a sorte de o comandante da base ser benfiquista. Deixava-me sair desfardado e podia treinar durante a semana”.
Nessa altura já tinha sido contratado pelo Benfica, mas tinha que correr com a sua própria bicicleta em provas que decorriam aos fins-de-semana. Numa dessas competições, em Odivelas, caiu, fez um traumatismo craneano, que lhe valeu dois dias de internamento no Hospital de S. José, em Lisboa. A bicicleta, a tal que lhe saíra na rifa, também não resistiu ao acidente e foi só nessa altura que o clube ofereceu-lhe uma bicicleta para retomar a competição.
Dois anos e oito meses depois do início do serviço militar obrigatório, deixou a farda e as corridas. “Os 32 meses de tropa foi o tempo em que fui ciclista”, confessa.
Regressado a Santiago do Cacém, retomou o lugar de empregado no ferro-velho, para depois iniciar uma carreira de empresário e dirigente associativo que na atualidade continua a desempenhar com a pedalada com que ia a casa durante a tropa. Aos 23 anos assumiu a presidência do União Sport Clube de Santiago do Cacém, que chegou, mais tarde, a ter a equipa principal de futebol na segunda divisão nacional. Continuou a deslocar-se de bicicleta, até ganhar para comprar uma motorizada.
Sem grandes oportunidades na vila alentejana, Jorge Nunes decidiu emigrar, como muitos outros conterrâneos fizeram na altura – finais da década de 1950, início dos anos 1960. Atravessou-se no caminho o presidente da câmara, de quem era necessário na altura o consentimento para sair do pais pela via legal. Como o tinha afrontado numa situação enquanto dirigente desportivo, o autarca recusou-lhe o “visto” e a hipótese de “ir para fora” esfumou-se. A alternativa foi ir estudar, à noite. Entretanto empregou-se na secretaria do hospital da vila e chegou até ao então 5.º ano do liceu.
Aos 26 anos convidaram-no para trabalhar na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Santiago do Cacém. “Até hoje”. Em 1975 passou a gerente da instituição bancária e dez anos depois assumiu a sua presidência. Foi um dos fundadores da Federação Nacional do Crédito Agrícola Mútuo (FENACAM), em 1978, e assumiu por diversas vezes a liderança da organização. Em 1984, aquando da criação a Caixa Central de Crédito Agrícola, foi um dos seus fundadores e vice-presidente desde o início. Chegou a ser presidente entre 2002 e 2004.
Entretanto, para além do trabalho e dos investimentos que foi fazendo e gerindo, ainda arranjou tempo para assumir o cargo de provedor da Santa Casa da Misericórdia de Santiago do Cacém – instituição que emprega 300 pessoas -, funções que desempenha “há mais de 15 anos” e que o levaram indiretamente ao lugar de tesoureiro da União das Misericórdias. Pelo meio ainda arranjou tempo para ser vereador no Município da cidade alentejana durante um mandato, eleito como independente nas listas do PS. Tanta atividade obriga-o ainda a gerir o seu tempo “ao minuto”, quando está à três primaveras de comemorar os 80 anos. No último 10 de junho, Dia de Portugal,  recebeu do Presidente da República, Cavaco Silva, a comenda de Oficial da Ordem do Mérito Empresarial – Classe do Mérito Comercial.
E, no meio disto tudo, onde ficou a paixão pelas bicicletas? Ainda fez umas viagens, participou nalgumas provas e garante que anda “todos os meses”. “Falta-me tempo”, confessa. Mas se se perdeu um ciclista, ganhou-se um patrocinador de provas, que foi o principal financiador da Volta ao Alentejo durante vários anos e organizou o Grande Prémio da Costa Azul em ciclismo, que entretanto deixou de se realizar.
Voltar a pedalar com mais frequência é um desejo. Talvez quando abrandar o ritmo de vida e a disponibilidade de tempo ajude. Lá em casa estão três bicicletas à espera. Uma para andar no campo (BTT), outra na estrada e até uma de pista, que lhe ofereceram. Pernas, diz que não lhe faltam.

MM

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